Oficina Brennand: lugar de transmutação

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Matéria publicada originalmente no blog ‘lugares de memória

Texto de Sylvia Leite e fotos de Gustavo Moura

Um túnel verde faz a passagem entre o mundo real do Recife e o universo mágico da Oficina Brennand, localizada no bairro da Várzea, subúrbio da cidade, ao lado de remanescentes de mata atlântica e à margem do rio Capibaribe.  O impacto da visita é proporcional ao potencial ‘alquímico’ do lugar, que se irradia no tempo e no espaço.

A primeira transmutação ocorreu muito antes de sua constituição  como oficina artística e atingiu o próprio Francisco Brenand, seu criador, que saiu do Brasil aos 21 anos para estudar pintura na Europa acreditando que a cerâmica fosse uma arte menor. Bastou uma semana em Paris para aquele desdém se transformar em desejo de realização. Convidado pelo artista plástico Cícero Dias a visitar uma exposição de Picasso, ficou surpreso ao constatar que em vez de quadros, o mestre da pintura estava expondo uma coleção de aproximadamente 300 cerâmicas. Nesse dia, Brennand jurou que quando voltasse ao Brasil se dedicaria com seriedade àquela forma de arte que ele havia desprezado.

Depois veio a transmutação física dos materiais, repetida cada vez que se acendia um forno para que a argila retirada da terra fosse transformada. E dali  saiam  esculturas de inspiração totêmica, ladrilhos sobre os quais eram pintados os murais ou simples peças de pisos e revestimentos que, vendidas, bancariam os custos  iniciais de todo esse complexo.

A terceira diz respeito a nós, os visitantes. Gostemos ou não de suas formas e cores, é impossível não mudar o estado interno, seja por arrebatamento ou por incômodo, diante de tamanha riqueza de significados. Tanto os ambientes internos como os jardins, estão repletos de alusões a seres mitológico s e a símbolos culturais e religiosos das mais diversas tradições.

A capela cristã, por exemplo, convive com figuras da mitologia greco-romana, lagartos, basiliscos, monstros e um Templo do Sacrifício que remete ao massacre das civilizações pré-colombianas. Para completar, em todo o complexo está presente a marca da oficina que traz a imagem do arco e da flecha de Oxóssi, uma das divindades africanas.

O que parece imprimir unidade ao conjunto é a ideia de reprodução, expressa na maioria das vezes por meio de formas sexualizadas e vista por Brennand como o veículo para obtenção da imortalidade e da eternidade: “As coisas sobrevivem porque se reproduzem”, diz.  Nesse conceito, se fundamentam todas as obras e todos os temas que as permeiam.

O ovo como matriz 

A imagem central é a do ovo, considerado pelo artista como o ponto de partida de seu trabalho e de seu pensamento e explorado incansavelmente em dezenas de peças. Ora aparece inteiro, ora em rebentação. Algumas vezes dá contorno à escultura, em outras aparece como detalhe; mas todos parecem responder a uma matriz, localizada na praça das esculturas.

Ali, dentro de um mini templo de cúpula azul, encontra-se um ovo suspenso que concentra todos esses significados. Para protegê-lo, foi erguida uma muralha repleta de sentinelas. São os Pássaros Roca – figuras criadas por Brennand e batizadas com esse nome em alusão à ave mítica da história de Simbad, o Marujo,  incluída no  Livro das Mil e Uma Noites.

Além das esculturas e da parte arquitetônica, a Oficina Brennand abriga centenas de pinturas e desenhos do artista. Ele não confirma, mas calcula-se que existam ali cerca de duas mil obras. O número pode parecer exagerado, mas torna-se mais realista ao constatarmos que a área total da oficina chega a 15 mil m² e que nesse espaço funcionam uma galeria (Academia), um espaço para eventos (Estádio), dois templos, um auditório, um café, uma loja, uma capela restaurada por Paulo Mendes da Rocha e jardins projetados por Burle Marx que incluem fontes e espelhos d’água .

 

A herança familiar

A atual Oficina Brennand foi erguida em 1971 a partir da restauração dos galpões abandonados da Cerâmica São João, fundada por seu pai em 1917. Assim como o filho, Ricardo Brennand não tinha motivação comercial. Era proprietário de usinas de açúcar e queria a fábrica de telhas e tijolos somente por paixão, pois colecionava porcelana e obras de arte.

Com esse histórico, Francisco teve campo fértil para desenvolver seu talento. Quando criança, brincava com os irmãos na olaria e já percebia ali um clima de mistério, olhando para os fornos com se fossem catacumbas. Também nesse lugar, conviveu com o artista plástico Abelardo da Hora, que trabalhou na fábrica, e aprendeu com ele a fazer esculturas.

Aos 15 anos, foi encarregado pelo pai de acompanhar a restauração de obras de arte que ele havia comprado de um colecionador. O restaurador contratado era o artista Plástico Cícero Dias, que anos depois aconselharia seu pai a enviá-lo a Paris. Em pouco tempo, os dois tornaram-se amigos e Francisco gazeava aula para vê-lo pintar.  Por causa dessa convivência, tornou-se amigo de outros artistas mais velhos, como Mário NunesBaltazar da CâmaraMurillo La Greca, todos fundadores da Escola de Belas Artes do Recife, e pintava com eles nas tardes de domingo depois de almoçarem todos juntos na casa da família Brennand.

Quando decidiu construir sua oficina a partir das ruínas da fábrica, Brennand não tinha recursos e não recebeu apoio financeiro da família, mas pôde contar com duas heranças que o pai lhe repassara ainda em vida: a paixão pela arte e as ruínas da olaria. A partir dessa base, e do desejo de povoar o local com suas obras, conseguiu custear a oficina artística a com a produção de ladrilhos industriais que logo fizeram sucesso entre os arquitetos e possibilitaram a construção desse impressionante museu.

Em busca do eixo do mundo

Com mais de 90 anos, Francisco já não faz mais esculturas. Como nos primeiros tempos, dedica-se apenas a pintar e a escrever. Em 2016, lançou o Diário de Francisco Brennand, organizado em quatro volumes pela sobrinha neta Mariana, que ficou entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Biografias.

Mesmo com a redução da atividade artística, Brennand segue mudando constantemente a sua oficina e afirma que continua a se sentir influenciável e receptivo, aberto a transmutações. Agora mais do que nunca.

Embora tenha morado dez anos na Europa e feito mais de 90 exposições pelo mundo afora, elegeu a Várzea como o centro do mundo. É aí, no seu ‘bosque sagrado’ que ele pretende continuar vivendo e produzindo como sempre,  “no fio da navalha, na corda bamba, tentando coincidir com o eixo do mundo” porque  segundo acredita “é aí que o artista encontra a verdade”.

Oficina Brennand – Várzea – Recife – Pernambuco – Brasil 

A história da Oficina Brennand está registrada em inúmeras reportagens e anos atrás ganhou também um documentário e um livro:

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6 Comentários

  1. PARABÉNS PELA MATÉRIA
    Matéria publicada originalmente no blog ‘lugares de memória‘

    Texto de Sylvia Leite e fotos de Gustavo Moura

  2. Showw !! Muito bom a sua materia informaçoes maravilhosas e ricas de culturas, parabéns maggio por essa mareria.

  3. Ótima descrição de tudo. Ao ler parece que estamos vendo o local, seus detalhes e pessoas.
    Destaque para a excelência da arquitetura, o toque dos olhos d’água de Burle Marx…parabéns!

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